29 de fevereiro de 2008

"Falta consciência histórica à população portuguesa"

Quando é que se interessou pela música?

Foi em miúdo. Na escola, sempre cantei. Lembro--me de ter interpretado uma ópera de Mozart. Na altura, estava longe de saber que iria fazer dessa vida profissão. Mas só mais tarde é que me interessei pelos instrumentos de sopro...

Porquê? Não são instrumentos tão habituais como a guitarra ou o piano...

Sim, é verdade mas eu sempre quis reproduzir a voz. Queria tocar como se estivesse a cantar. Os livros dizem que a flauta de bambu é o instrumento que mais se assemelha com a voz humana. Também sempre me encantou a imagem do pastor a tocar no campo. A faceta bucólica sempre esteve presente.

Cresceu na cidade. De onde vem esse gosto pela ruralidade?

Sou de Campo de Ourique [Lisboa] mas sempre tive gosto pelo campo. A música tem uma grande ligação à natureza. De certa forma, creio que percorri um caminho inverso a muitas pessoas que nascem num meio rural e querem vir para a cidade a todo o custo.

O que é que encontra no campo que a cidade não lhe oferece?

Principalmente, a paz interior. Há um recolhimento muito forte que é difícil de conseguir na cidade. Todos os dias viajo até ao campo para tocar um pouco. É um ambiente calmo, com muito ar puro. O lado contemplativo está sempre presente.

Pratica 'yoga'?

Desenvolvo uma série de actividades ligadas ao yoga mas a mais importante de todas é mesmo tocar (risos). Falando a sério, é muito bom para a saúde até pelo exercício que representa para os pulmões.

Como é que se sente num meio urbano cada vez mais agressivo?

Não gosto de multidões. Prefiro estar no meu canto mas não sou anti-social. Se estiver muita gente num espectáculo meu, óptimo! Gosto da Lisboa antiga, do Cais do Sodré e de Alfama. Sou muito fadista e até toco por carolice todas as segundas-feiras no restaurante Mesa de Frades.

Fado Bailado, disco que editou em 1983, obteve sucesso comercial e reconhecimento. Foi inesperado?

O Fado Bailado nunca foi pensado para grandes multidões. Quando o gravei, fiquei à espera que os puristas do fado me atacassem. Mas afinal não. No fundo, é apenas cantar o fado mas recorrendo a um instrumento de sopro.

De onde vem essa alma fadista que ficou clara nessse disco?

Quando era mais novo, gostava de fado e de flamenco e só mais tarde é que me envolvi com o jazz. Gostava muito da Amália Rodrigues e do Alfredo Marceneiro. Sou um pouco marginal mas não à força. Considero que a minha música é contestária apesar de já ter obtido muito sucesso com ela.

Esteve ligado ao fado e ao jazz. Considera-se um músico ecléctico?

Através de todas as diferentes influências, procuro mostrar um espírito que passa pela música do Oriente, pela Índia, pelo Norte de África e até mesmo por Goa. Tocar outras músicas é tocar-me a mim. Por vezes, sinto que gostava de saber tudo mas sei que é impossível (risos).

Há um interesse pela diáspora portuguesa que lhe é muito caro. É um apaixonado pela história?

É preciso compreender as origens. Creio que falta consciência histórica à população portuguesa para se perceber que, por exemplo, a influência árabe está muito presente na música.

De onde vem o seu interesse pela cultura oriental?

Sou fã de toda a música de raiz. É preciso compreender as origens para andar para a frente. A música oriental tem muito a ver connosco. Canta emoções como o fado. Tem muito a ver com o lamento. Para além disso, é muito chegada à voz.

Mais uma vez o lado espiritual presente...

É preciso compreender essa ligação. A música é a voz de Deus.

Tocou em Jacarta, na Indonésia. Como foi essa experiência?

Foi fantástico. Os problemas não estão no povo. São coisas criadas pela classe política. Não foram as pessoas que assaltaram Timor. É um território com uma tradição musical muito rica. Nesta altura, já nem estou completamente familiarizado com a cultura local. Mais importante, foi o concerto em Bombaim. Nunca me tinha sentido tão nervoso. Foi importante para ultrapassar fraquezas.

Sente que há tesouros por descobrir em tradições menos exploradas?

Claro! A cultura anglo-saxónica é avassaladoramente potente e consegue mesmo enganar as pessoas. Por exemplo, um miúdo pode ter a tentação de dizer que música portuguesa é toda aquela que é cantada em português o que não é verdade. O rock tem uma matriz claramente anglófona e pode ser cantado na língua portuguesa mas não é por isso que passa a pertencer à tradição nacional. Sou capaz de reconhecer uma frase musical por conhecer a nossa raiz.

As novas tecnologias podem ser importantes para a divulgação de outras músicas ?

Sim, mas acabam por não ser. Na teoria, são muito boas mas, mais uma vez, o imperialismo do mundo ocidental manipula a verdade. É o jogo do mais potente, mais uma vez a funcionar. Os mais poderosos dominam completamente a divulgação. Há alturas em que me sinto um estranho com o domínio de uma cultura que me é bastante estranha. Confesso que nunca estive muito ligado à pop.
fonte ~ dn

chapéu preto

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