17 de dezembro de 2007

«Amo contar a história mais do que cantar»

Depois das oito noites de sucesso no Jardim de Inverno, Abril

regressa esta noite ao São Luiz. A cantora leva, desta vez, ao palco principal do teatro, a sua homenagem a Zeca Afonso, o mestre que nunca conheceu e a quem continua a chamar «um amigo do gira-discos».

Margarida Caetano | mcaetano@destak.pt

Não ouve Zeca só de agora. Este disco andava atrasado?
Se quer que lhe diga, comecei a ouvir Zeca muito antes de ouvir Amália. Ouvia-o em adolescente, senão mesmo em criança. A Amália surgiu na minha vida muito mais tarde. Só que de facto foi ela que me tocou. Se comecei a cantar foi pela mão ou voz da Amália, pela sua capacidade de contar histórias. Isso interessou-me de sobremaneira. O Zeca teve o papel de ser um amigo dos gira-discos, como eu digo no livrinho que conta do Abril. Os discos dele estavam sempre ali, sempre à mão, sempre se ouviram e trautearam temas dele na minha casa.

Dois mestres, dois tributos?
Fiz o mesmo com a Amália, se bem que a minha homenagem a ela foi aprender a cantar fado mais tradicional, que era uma coisa que nunca tinha feito antes. Mas depois pensar, não posso cantar Amália e não cantar também Zeca Afonso porque ele também me ensinou a crescer.

Amália, já o disse, ensinou-lhe fado e histórias. E Zeca, foi mestre em quê?
A ensinar-me a simplicidade. E, de facto, acho que aprendi bem e fui uma boa pupila. Acho que a súmula é um disco do Zeca no feminino.

Quer explicar melhor essa ideia?
Tem a delicadeza que só uma mulher lhe poderia dar. Sou muito orgulhosa disso. Enquanto o gravava cheguei a achar que me estava a colar demasiado à imagem do Zeca, só que ele tem uma linguagem tão depurada e simplificadora das coisas que não há outra forma de se cantar, senão daquele jeito e maneira!...

Depois de se ouvir esse receio diluiu-se?
Completamente! Eu estou ali toda. Nesse sentido é um disco muito Cristina Branco.

Um CD chegou para recolher todos os embriões do Zeca?
Seleccionei 20 e no final decidi gravar 16. Os que ficaram de fora, e que eu amo de igual forma, faço-os ao vivo. Creio que os que estão lá são, para mim, os fundamentais. No caso do Zeca nada é supérfluo, mas considero-os menos importantes no seu reportório. Há uma ordem cronológica e à vida do Zeca, enquanto homem e cantor, desde a ruptura com o fado de Coimbra, passando por África e pelas baladas. Está ali um bocadinho de cada momento.

Recorda-se do instante em que Zeca morreu e Portugal soube?
Perfeitamente! Os meus pais ficaram incomodadíssimos. Era um nome e uma voz presente entre nós e, apesar de ser só o cantor do meu gira-discos, foi a primeira vez em que convivi de mais perto com a morte. E, como eu, vi muitas pessoas chorarem, lá fora na rua, nos cafés e na tv.
É tão dramático perceber o quão importantes algumas pessoas são na nossa vida...É como se as conhecêssemos. Nunca nos apertamos a mão, nunca falámos nem privámos com elas, e no entanto, quando nos desaparecem do presente, percebemos que nos fazem falta.

Aconteceu o mesmo quando Amália morreu.
Aí, então, lembro-me perfeitamente. Eu até já cantava! Recebi a notícia, fora de Portugal, e fez-me imensa confusão.

Fado, lágrimas, discos de homenagem: sente-se uma eterna órfã?
Sei que sinto uma perda inestimável que o fado não consola e as lágrimas não exprimem. Há qualquer coisa de mim que se perde no instante da morte de alguns outros. Foi igual quando morreram Álvaro Cunhal e Eduardo Prado Coelho.

Este último, aliás, seu admirador atento e confesso.
Apostou e acreditou em mim desde o início. Foi muito importante no meu percurso de cantora.

"Abril" é tudo menos um álbum curvado de mágoas.
Porque o Zeca era o contrário disso! Era quase uma criança. A começar pela forma como gostava de brincar com as palavras. Apesar de ter uma relação íntima com a doença e ser até um pouco hipocondríaco, era muito ligado à vida. A expressão maior da sua liberdade era ser quase sardónico consigo mesmo.

Até parece que o conheceu. Quem é que lhe contou tantas coisas do Zeca?
Esta é a parte gratificante de concertos em espaços intimistas como o do S. Luiz.

Refere-se aos espectáculos no Jardim de Inverno, a convite do Jorge Salavisa?
Sim. Fui cheia de vontade de amar o Zeca em palco, com tudo o que tinha para dizer a partir do que aprendera dele. E depois, durante aquelas noites que lá estive, vi surgir entre aquelas quatro paredes pessoas que no fim vinham partilhar comigo mais qualquer coisa que desconhecia. Porque todos os amigos do Zeca ali estiveram: políticos, amigos íntimos, colegas de profissão e luta, família, todos. Foram momentos impressionantes de harmonia, consenso, coisas a que nunca na vida tinha assistido. Foi preciso estar a cantar Zeca para as ver acontecer!

Esta noite, no regresso ao S. Luiz, espera reviver um momento idêntico?
Há coisas únicas, mas aprendi que quando o assunto é o Zeca, toda a gente tem sempre alguma coisa para dizer. É como se nos sentássemos todos à mesma mesa a saborear uma pessoa decisiva na cultura portuguesa.

Percebe-se que preparou "Abril". Foi crucial?
Não gosto de cantar nada levianamente. Li muitos livros e falei com quase todos os jornalistas que o entrevistaram, amigos, etc. Foi importantíssimo para absorver a sua energia e música. Cantei-o de forma muito mais tranquila.

Na digressão sobre Amália, já ia cantando este novo CD.
Depois de cantar um poema do pré-revolução do Pedro Homem de Mello, abro a 2.ª parte com ele. Explico que estava preso, quando fez o "Redondo Vocábulo", o que foi a ditadura e qual a importância da liberdade para todos nós. Gosto de narrar a história.

Já o disse: aprendeu a contar com ‘A Cantadeira'?
(Risos) Toda a gente a venera pelo seu grande potencial. Eu amo a Amália pelo outro lado. Não a parte sombria. Gosto de a imaginar na tranquilidade de absorver os poemas, a contemplá-los e a tentar perceber o que tem de si para lhes dar. É assim que eu quero ser porque, no fundo, é assim que eu sou. Mais do que a experiência vocal que possa ter adquirido em todos estes anos de palco, quero respeitar quem escreve e compõe. Quero nunca desvirtuar o que quiseram dizer. Amo contar a história mais do que cantar.

Daí que os seus concertos tenham cada vez menos música?
Exacto. Já se canta quando se conta. Os músicos cada vez tocam menos. Eu cada vez canto menos. Sendo que a música nunca desaparece, mas (a começar por mim) ninguém tem que fazer muitos floreados porque a história está toda ali. Quando existe sinceridade e convicção naquilo que se está a fazer não é preciso fazer grande folclore à volta. Gosto que a minha música seja como a água: vá passando.

Sem comentários: