16 de maio de 2010

O fado tem uma nova história que só se canta em português

A história que se segue, apesar de improvável, é matéria de facto. José Alberto Sardinha, advogado de Torres Vedras, investigador da música tradicional há mais de 30 anos, deu por si em nova viagem entre Beiras, de gravador ligado, à espera de aumentar a sua colecção de recolhas musicais de um Portugal tradicional. "Pela enésima vez, escutava uma velhinha entre cantos do romanceiro e encontrava neles incríveis semelhanças com o fado." Corria o ano de 1988 e, 16 anos depois de se ter iniciado nas lides da descoberta musical, o investigador regressava a casa, recuperava gravações de outros anos e consultava boa parte da sua biblioteca etnográfica. "Foi uma epifania: e se o fado não fosse de outro mundo, se tivesse nascido no meio da nossa tradição oral?"

A hipótese concretizou-se, pelas contas de José Alberto Sardinha, e fez-se livro. "A Origem do Fado" abandona teorias que fixam a génese do género entre África, Brasil e terras árabes e fixa-a no Portugal medieval. O autor diz "o que nunca foi antes publicado: que o fado nasceu da tradição oral, do substrato musical presente em todo o território português", fixando-se mais tarde em Lisboa com uma convicção que não se repetiu em qualquer outra parte. Os porquês de um estudo transformado em livro: "Porque, ao ter descoberto uma parcela importante da história da cultura portuguesa, achei que deveria ser revelada."

Recuemos nos arquivos de José Alberto Sardinha para que tudo pareça lógico - o próprio nos diz "estes temas têm de ter lógica". O estudante de Direito, nascido em Angola, chegou a Lisboa em 1960. Enquanto aprendiz na Faculdade de Direito integrou o Coro da Juventude Musical Portuguesa - "onde estavam também o actual secretário de Estado da Cultura, Elísio Summavielle, o Eduardo Paes Mamede, que faz música para teatro, o Luís Pedro Faro, maestro, o João Lisboa, crítico musical do 'Expresso', ou o José Manuel David, dos Gaiteiros de Lisboa". A orientação surgia pela mão do maestro Francisco d'Orey, que revelou ao futuro advogado o valor da recolha etnomusical. "Hoje posso dizer que tenho o maior arquivo do género em Portugal", graças a esforço e investimento: "Um dos primeiros gravadores que tive foi um Nagra4S Stereo. Custava dois mil euros."

O seu objecto de estudo primeiro sempre foi a "tradição rural". O fado não fazia parte deste catálogo, até à pergunta fundamental ter surgido no caminho: "Se o fado é uma música de tradição oral, inequivocamente, porque não compará-la com a restante herança musicada dessa mesma tradição?" A explicação, em linhas condensadas (que as mais de 500 páginas do livro servem para revelar os resultados do estudo de forma fundamentada), pedimo-la a José Alberto Sardinha: "O romanceiro é o herdeiro das canções de gesta, que celebrizavam os heróis de guerra. Foram provavelmente os primeiros cantos profanos, popularizados pelos jograis nas praças das localidades. Depois das epopeias, os cantos começaram a focar-se na história dos amantes dos nobres e daí chegaram à Rosinha costureira e ao caso de ciúmes da Isaura e do Manel." Pode parecer história de pouca monta para a canção portuguesa mais popular mas a narrativa continua.

Evolução Os romances eram interpretados por cantores ambulantes, "na maioria cegos, por terem melhor ouvido, memória e pela maior necessidade de dinheiro", à guitarra, acordeão ou violino. Vêm das aldeias para as cidades, concentram-se em Lisboa "porque é onde há mais gente e recantos para tocar as canções" e gera-se um hábito. A nobreza gosta, cria a moda e leva o fado das tabernas - "onde os cegos cantavam a troco de um prato de sopa ou um copo" - para os salões. Aqui chegamos ao conde Vimioso, que se apaixona por Maria Severa, lendária fadista, e tudo o resto é fama e glória. Do século XVI ao século XIX, com a tradição oral como motor.

"Ou seja, o tal substrato comum à tradição musical nacional diz que o fado existia em toda a parte antes de 'ser lisboeta', como hoje é entendido popularmente." O fado cantava-se nas aldeias de norte a sul, ainda hoje está nas vozes de quem se passeia entre as tabernas e os campos, mas não com o mediatismo de Lisboa. "Quando se tornou moda, chegou à revista. Recebeu influências e desmultiplicou-se em fórmulas e géneros, do fado marcha ao fado tango. Já prestou atenção à "Menina das Tranças Pretas? É um tango", afirma o autor. E o fado fez-se produto exportável.

E é neste fenómeno de popularidade que reside a polémica sobre as diferentes teorias da origem do fado. José Alberto Sardinha, convicto, assegura que "se o vira fosse tão famoso, seria objecto das mesmas divergências". Sobre outras teorias, o investigador diz que lhes falta "critério e objectividade, falta-lhes esta visão global do que é comum a todo o país. A etnografia, o folclore musical, presta-se muito a fantasias. Porque não há ninguém para reclamar, o autor não vai aparecer." Recusa as explicações que falam "de uma dança tornada canção vinda do Brasil, apesar de esta ser a origem das primeiras notícias oficiais sobre o fado". Ou as contaminações árabes ou africanas "ainda que existam semelhanças em géneros como a morna". A origem do fado está na vida rural, que em Lisboa "era também muito presente ainda durante boa parte do século XX. É essa a base comum, por isso a expressão musical era coesa por todo o país."

José Alberto Sardinha explica que a palavra fado, mais que destino, quer dizer "vida, desenlace, acontecimentos, vivências". E que antes de ser a música, é "a história, o poema, a narrativa" e que o original está na "tragédia de faca e alguidar". Espera contestação, diz-nos que "esta não é uma ciência exacta", mas é o resultado de uma "experiência musical concreta".
fonte ~ jornal i

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