27 de novembro de 2010

Carlos do Carmo e Sassetti. Separados por 30 anos. Juntos em disco.

Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti conheceram-se há sete anos, quando o fadista celebrou 40 anos de carreira. Mas quase se poderia dizer que os dois são amigos de longa data, apesar dos trinta anos que os separam. Sentados à mesa de um bar de hotel junto ao Tejo, desdobram-se em elogios mútuos, entre chá verde e histórias passadas. A razão da conversa? Um disco que não é fado nem jazz, mas que simboliza o encontro de duas gerações distintas da música portuguesa. E muito mais, como veremos adiante.

Carlos do Carmo sempre quis gravar "as canções de uma vida". Já Bernardo Sassetti sempre ouviu Carlos do Carmo. Em casa, ainda pequeno, lembra-se de escutar o fadista na rádio a cantar "Os Putos". Poderíamos ser fiéis ao velho pregão do "Video Killed The Radio Star" - e até admitir que hoje poucos escutam rádio em casa - mas não andaremos muito longe da verdade se dissermos que, desses tempos, Sassetti guardou muito mais do que uma recordação de frequência modelada. "Ouvir o Carlos era uma forma de tentar ser melhor. Uma referência como músico, cantor, conversador", diz.

Talvez por isso, este encontro, que muitos classificaram de improvável, seja afinal o ponto de contacto mais natural entre dois músicos, que se influenciaram mutuamente ao longo dos anos. Carlos do Carmo, que já tinha convidado Sassetti para fazer as orquestrações do seu espectáculo comemorativo dos 40 anos de carreira, define a ideia como "uma martelada matinal". "Acordei a pensar que queria gravar estas músicas com o Bernardo. Daí ao telefonema foi um impulso", recorda.

Tudo começa à mesa

Convém esclarecer que "Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti" - assim se chama o disco - nasce primordialmente de conversas, antes de ganhar forma musical. De conversas e de histórias e de jantares intervalados por algumas incursões ao piano e microfone.

"Todas as músicas foram construídas a dois, em minha casa, com muita conversa e piano pelo meio. O mais importante era transformar aquelas peças num momento genuíno que tivesse que ver com o nosso universo de voz e piano, de um intimismo profundo, encontrar um espaço e tempo para cada canção", confessa Sassetti.

Claro que, tratando-se de músicas que ganharam vida própria - e se eternizaram - não será errado dizer que esta se revelou como uma responsabilidade acrescida para ambos. Sassetti define cada canção como "uma facada no original". "Mas uma facada com muito respeito e admiração". Provavelmente, só assim seria possível a Carlos do Carmo gravar canções com as quais tem uma relação quase visceral. Falamos, naturalmente, das interpretações de temas escritos por Sérgio Godinho, Fausto, Rui Veloso e, acima de tudo, José Afonso.

"As escolhas são afectivas. Uma vez o Sinatra fez um disco chamado "Some Nice Things I''ve Missed", um disco com versões de músicas que poderiam ter sido escritas para ele. Sinto um pouco isso em relação a estas dez canções do disco, embora tenha tido grandes artistas a escreverem para mim", esclarece Carlos do Carmo, antes de ser interrompido por Sassetti, que quis falar das suas preocupações relativas às canções.

"Tive muitas, sobretudo porque falamos de tocar temas que têm à partida uma versão definitiva, que é a original, o que acontece com o ''Yesterday'', dos Beatles, com Brel, esse verdadeiro tormento, ou o Zeca", diz. "Não se trata de um disco de covers. Isso seria um mal necessário. Existem textos bonitos e nós fomos à procura de novas soluções."

José Afonso teria gostado?

Da lista de dez canções do disco, fazem parte melodias tão célebres como "Lisboa que Amanhece" (Sérgio Godinho), "Foi por Ela" (Fausto), "Porto Sentido" (Rui Veloso e Carlos Tê), "Cantigas do Maio" (José Afonso), "Avec Le Temps" (Leo Ferré), "Quand on a que L''Amour" (Jacques Brel) e "Gracias a La Vida" (Violeta Parra). Talvez pela sua ligação afectiva, Carlos do Carmo fale de José Afonso com a naturalidade - e saudade - de quem lhe assinou uma petição para não ser preso há muitos anos.

"Andou desaparecido uns tempos até ter entrado na minha casa de fados, para me agradecer. Era uma pessoa muito atenta", recorda. E José Afonso, teria gostado do disco? "Não sei, vou ter uma conversa muito séria com a Zélia (viúva do músico) para saber o que ela pensa que ele acharia. O Zeca e eu tínhamos uma relação de mútuo respeito. Admirava-o particularmente. Ele é um ser à parte, a minha referência ética e estética."

O disco foi gravado em poucos dias, com algumas das faixas a saírem ao primeiro take. "Tínhamos encontros semanais, conversávamos imenso e tocávamos um bocadinho. Acho que as músicas foram sempre tocadas de forma diferente", conta. Dessa liberdade criativa, nascem canções familiares, mas com outro código genético, marcado pelas deambulações jazzísticas do pianista e pelo cantar falado de Carlos do Carmo. "Tudo muito natural, não houve grandes coisas combinadas, nada estava escrito", assegura o fadista.

A cumplicidade entre Sassetti e Carmo não se espelha apenas no disco que acabam de editar. A própria conversa, os olhares comprometidos e as piadas que trocam entre si mostram bem o entendimento entre os dois, humano e musical. "A realidade é que são dois amigos que se passeiam por uma ou várias cidades em que tudo acontece de forma muito tranquila. Se um vai para uma rua, o outro segue-o naturalmente. E existe espaço para o silêncio", sorri Bernardo Sassetti. Uma coisa é certa: aqui, o silêncio não é fatal.
fonte ~ jornal i

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