Para quem acredita que o talento não lhe pertencia, mas era dádiva divina, dizer que Amália Rodrigues morreu há dez anos pode ser uma imprecisão biográfica. O corpo desapareceu, mas a voz e o legado mantêm a fadista viva e notada entre os vivos. Foram 79 anos de presença física, já são 89 de mito - o que quer dizer que o corpo foi sepultado há dez anos.
Amália, a voz do mistério, viveu mais ou menos 79 anos. Morreu, é certo, a 6 de Outubro de 1999. E nasceu em 1920, também é certo (a própria não tinha dúvidas disso). Em que mês? "A minha avó dizia-me que eu nasci com as cerejas. Registaram-me a 23 de Julho. Mas, ao certo, ao certo, não sei o dia em que nasci. Cá por mim, optei pelo dia 1 de Julho, que é logo o princípio do mês", contava Amália da Piedade Rodrigues à jornalista Maria Augusta Silva há 24 anos (Revista do DN, 25 de Agosto de 1985). Um mito sem mistério nunca seria um mito - Amália não queria ser uma lenda como a Severa, e não é.
Nascida num qualquer mês de 1920, talvez Maio, mês das cerejas, andou "três anos e três meses na escola" (lamentou-se sempre da falta de estudos, mas diz que o fado a educou - insistiu nessa tónica numa entrevista simbólica a Baptista-Bastos, publicada no Diário Popular, em Abril de 1987). Em Lisboa: viu a luz na Rua Martim Vaz, freguesia da Pena, viveu sempre na capital - primeiro do império colonial de Salazar ("nós somos o que nos ensinam, na escola ensinaram-me isso"); depois na de um país que lhe atirou à cara uma relação privilegiada com o Estado Novo ("tudo calúnias", protestou vezes sem conta - há quem diga que a única benesse foi uma viagem a Paris autorizada por António Ferro).
Dizia-se que sempre em Lisboa: com os pais, depois com os avós (quando os pais regressaram à Beira Baixa), depois novamente com os pais. Como bordadeira, depois a vender bolos, finalmente a vender fruta com a irmã Celeste e a mãe (o pai era sapateiro mas "não sapateava", como glosou a fadista mais tarde). Nenhum mistério aqui: um Portugal paupérrimo, uma família pobre, uma menina a fazer-se mulher muito cedo. Mas nos três anos e três meses de escola ficava o sinal do destino: Amália brilhara a cantar numa festa da escola. Aos 15 anos, o segundo sinal público do que viria aí - e o que viria aí não era qualquer coisa, era Amália. A fadista exibe-se numa festa de beneficência, com o tio João Rebordão à guitarra. Três anos depois, a fama popular de Amália restringia-se aos bairros: desiste do concurso para Rainha do Fado dos Bairros, face às ameaças de desistência das outras concorrentes, mas conhece o primeiro marido (Francisco da Cruz) e é recomendada a Jorge Soriano, que a leva ao Retiro da Severa. O mito ia ao encontro da lenda - o fado começava aqui a rescrever-se, em Portugal. Data a fixar: 1938 (embora Amália ainda cantasse em casas amadoras com outro apelido da família, Rebordão - o irmão Filipe, pugilista, singrava com esse nome).
"Na minha estreia, em 1939, no Retiro da Severa, levava um vestido amarelo às riscas verdes, com um peitilho. (...) Recordo-me perfeitamente do medo que senti nessa noite, porque ainda é igual ao medo que sinto hoje, sempre que vou actuar." O medo acompanhou--a toda a vida, e foi combustível desse mistério que Amália alimentava ainda a misticismo: "Eu não fiz nada para ter esta voz. Então, por que é que a tenho? Alguém ma deu. Acredito em Deus mesmo que não haja Céu", confessaria a Maria Augusta Silva em 1985, revisitando uma vida cheia. "Uma mulher feliz com momentos de infelicidade. Sou como toda a gente, não acha?", perguntava ela a Baptista-Bastos, 22 anos depois de um outra entrevista ao jornalista/escritor que, pelo tom polémico, tinha dado brado no Portugal profundo de 1965.
Aí, já Amália era o mito que hoje continua vivo: tinha passado e deixado os palcos com as revistas (de Ora vai tu!, em 1940, até Se Aquilo que a Gente Sente, em 1947), tinha passado pelo cinema, tinha dominado os grandes palcos do mundo. Em 1952, chegou a Nova Iorque, em 1956 estreou-se no mítico Olympia (e na despedida de Josephine Baker) para semanas depois ser já cabeça-de-cartaz. Tinha-se já divorciado de Francisco da Cruz (em 1949) e casado com César Seabra (no Rio de Janeiro, em 1961, união que durou até à morte do engenheiro, em 1997), tinha deixado aquele que será o seu maior contributo, além da voz (mas essa, já se viu, não era dela: "foi Deus"): o cruzamento da música popular com a erudição dos grandes poetas, começando por outro imortal, Camões.
Foi precisamente em 1965 que a Amália lhe aconteceu mudar o fado. "Cantar Camões? Pois canto Camões. Sou totalmente dependente do que acontece. Sempre fui", explicou numa deliciosa entrevista concedida a Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso em 1988, que O Independente reproduziu logo depois da morte da fadista. E na qual o agora político e o comentador/escritor lhe chamaram tão-somente "A voz de Deus em português".
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