Geralmente tímido, Camané - Carlos Manuel Moutinho - não fez juz à fama e falou sobre tudo, enquanto desfazia uma pastilha nos dedos (que mais tarde pediu permissão para comer, Camané é um cavalheiro). A infância, o fado, a droga e os medos que ainda hoje sente. O novo álbum chama-se "Do Amor e dos Dias" e é apresentado ao público dia 7 de Outubro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Disponível nas lojas a partir de segunda-feira, o fadista garante que este é um trabalho diferente de tudo o que já fez. Mas não se assuste: continua a ser fado do bom, com produção e direcção musical de José Mário Branco.
É um dos poucos fadistas homens de sucesso, com álbuns muito aguardados. Qual é o segredo?
Nunca na vida a palavra sucesso me passou pela cabeça. Tenho sempre um bocado de pudor da palavra, em relação ao que faço. Tenho tido alguma sorte, de uma forma contrária ao mercado. Quando se vendiam muitos discos em Portugal eu não vendia nada e agora que se vende menos, o mercado é mais reduzido, eu vendo mais. Tem a ver com o público que fui ganhando. As pessoas foram-me acompanhando e falando às outras. O meu primeiro disco de platina foi o anterior. Desde o primeiro disco já lá vão 16 anos. O segredo: fazer aquilo que acredito e de uma forma verdadeira.
José Mário Branco, enquanto produtor, tem um papel importante nesta matéria. É um homem exigente?
Somos os dois. Sou muito exigente, autocrítico, tenho imensa dificuldade em ouvir-me sem olhar para os defeitos. Só ouço os meus discos quando são feitos, durante bastante tempo, para me familiarizar. O Zé Mário percebeu logo a minha forma de estar no fado e criámos um ambiente musical que é para mim importantíssimo. Para este disco ele compôs um fado tradicional a que chamou fado Pombal, que tem uma terminação mais coimbrã e outra parte mais lisboeta. Ficou Pombal porque está ali a meio caminho. A forma como comunicamos no estúdio é cada vez com menos palavras. Isso para mim é óptimo, é fundamental.
Em digressão, fica com vontade de voltar a estúdio, para esse ambiente?
Quando acaba é um alívio. Este disco foi muito difícil para mim. Porque... sei lá, deixei de fumar, passei momentos extremamente difíceis. Mas consegui surpreender-me mais uma vez. Não me lembro nunca de ter tido um disco fácil. Já o disco anterior tinha sido difícil. Até os espectáculos, porque há momentos de grande aflição, medo e sofrimento. É como a vida. Para mim, cantar, é como a vida. Faz parte e acontece tudo.
Mas é difícil subir a um palco?
Era difícil nas casas de fado e é difícil no palco. Ficava muito nervoso, muito tímido, muito inseguro. Começava a cantar e na minha cabeça começava a pedir a ajuda e a pensar: "Não vou conseguir." A minha vontade era desaparecer. O que é certo é que aos poucos fui conseguindo. Hoje lido melhor com isso. Lembro-me de às vezes entrar no palco e não saber nada, ter uma branca enorme. É a coisa mais assustadora. Agora tenho uma espécie de estante, em palco, onde estão as letras. Acho que em 95% do tempo não olho para ela, mas vou espreitando o alinhamento e tal. É uma defesa.
Este disco é muito diferente dos anteriores.
Completamente diferente de tudo o que já fiz. Tem raiva, ironia, amor, ódio, coisas do dia-a-dia, do quotidiano. É um disco muito mais descritivo e muito menos introspectivo. É como um diálogo. Sempre achei que seria mais fácil para mim cantar fados mais introspectivos, falar de sentimentos. Neste disco tive de falar de ódio, de raiva de uma forma irónica e fui obrigado a sair de mim, a ter graça e uma certa ironia que se calhar há dez anos não tinha.
Até a capa deste álbum é diferente. Teve alguma influência na decisão?
Eu disse que não queria aparecer nesta capa. No disco que saiu há dois anos, que foi muito badalado, estava na capa. Depois pensei: vai sair este disco e quem é que vai ouvir? Tivemos de arranjar uma forma de interessar as pessoas por este. Como é completamente diferente dos outros, é preciso que isso seja sentido a todos os níveis. Isto foi tudo feito num painel grande, tudo posto aos bocados, com papéis rasgados a formar aminha cara. Foi tudo desconstruído e construído. Esta ideia foi uma espécie de consenso entre estar na capa e não estar.
Viveu muito na noite, no início da carreira? E hoje, continua?
Era até tardíssimo. Durante muitos anos vivi a deitar-me às 4h, 5h da manhã. Era uma vida muito boémia. Quando estava nas casas de fado havia noites em que cantava em três, quatro casas na mesma noite, três fados em cada. Era uma loucura. Mas mudei essa vida, completamente. Hoje saio só às vezes com amigos, ou depois dos meus concertos, um bocadinho. Outras vezes vou aos fados, mas raramente. E, durante a semana, fico em casa a ler, ouvir música, a ver filmes. Já não tenho aquela necessidade.
Na altura teve problemas de droga.
Tive. Depois também tive um processo longo de recuperação, que ainda se mantém, não é? Procurei sempre que não afectasse o meu trabalho, quando começou a afectar... acho que o fado me salvou disso. Eu sabia que para fazer uma carreira, para crescer artisticamente e como pessoa, a minha personalidade tinha que acompanhar a minha arte. Foi um processo de escolha. Com a ajuda de muitos amigos e pessoas que tiveram o mesmo problema, consegui ultrapassar.
Durante quanto tempo viveu assim?
Dez anos. Era tudo: álcool, comprimidos, tudo. Tudo o que pudesse alterar. Eu tinha que viver sentindo o menos possível. Era tudo muito difícil. Tinha medo, medo de crescer, de uma série de coisas. Hoje continuo com muitos medos mas aprendi a lidar com isso, a viver com os meus fantasmas. Acho que isso fez de mim uma pessoa melhor. Se tivesse continuado teria sido uma pessoa pior e seria uma pena. Toda a gente devia ter esta oportunidade, ou querer ter. Isto tem a ver com... é que é tão difícil, não é?
Ouve fado desde miúdo?
Sim, o meu bisavô e avô cantavam fado, o meu pai trauteava fados em casa, que era uma coisa que me irritava muito. Depois passei a fazer o mesmo. Aos sete anos fiquei doente em casa, durante um mês, com hepatite. Não conseguia estar quieto e a música acalmava-me. Os meus pais tinham muitos discos, quase todos de fado, menos três: Aznavour, Beatles e Sinatra. Ouvia tudo compulsivamente, incluindo os de fado e assimilei aquilo tudo.
Mas como é que uma criança de sete anos absorve isso tudo?
Naquela altura lembrava-me muito mais daqueles fados tradicionais do que me lembro agora. Os meus pais levavam-me às colectividades aos fins-de-semana, às matinés de fado ao domingo, onde havia poetas populares para eu ouvir. Eram poemas a falar do pai, da mãe, da escola, e eu pegava nisso e construía os meus próprios fados. Já fazia o que todos os fadistas fazem: o revisitar dos fados tradicionais.
Foi aí que começou a cantar?
Depois aquilo ficou tudo na minha memória, porque o fado tem uma certa lógica. Por causa das repetições era fácil decora. Um dia cantei para um amigo do meu pai, o Joaquim Valente, fadista amador, que passou a ser o meu padrinho do fado. Foi ele que me levou à casa de fados Cesária, onde cantei pela primeira vez. Tinha 8 anos e as pessoas adoraram, os meus pais nem estavam à espera que eu cantasse. Mas gostaram imenso. Cantei só dois fados: o fado Isabel, que é tradicional, com música do Fontes Rocha e letra de Jorge Rosa, e o "Puxa Avante" um fado tradicional com letra de um poeta popular a falar da mãe, aquelas coisas um bocado pirosas.
E a partir daí decidiu que era o que iria fazer?
Até aí achava que nunca ia cantar, que não tinha jeito nenhum. Tinha estado no Coro de Santo Amaro de Oeiras e aquilo não funcionava, tinha uma voz estranha... Sempre fui um bocadinho fanhoso, quando era miúdo. Mais tarde lembro-me que num programa de televisão, um senhor ligado às lides da música, disse-me que se quisesse continuar a cantar tinha de fazer uma operação. Um tipo aí... que não vou dizer o nome, ligado a editoras e tal. Mas eu sabia perfeitamente que ia cantar, ele é que tinha um problema nos ouvidos.
Foi nessa altura que concorreu à grande noite do fado? Como foi ?
A primeira vez foi em 1977, tinha 10 anos e fui considerado pela imprensa a grande revelação do ano. Depois voltei aos 12 anos. Aquilo era onde se encontravam todos os cantores, artistas e locutores portugueses. Começava às 22h e acabava às 10h. Era engraçado para mim ver as pessoas todas da televisão a cantar, como a Amália... Vê-los ao vivo, o mais engraçado era isso.
A partir daí foi sempre a cantar?
Em miúdo, gravei quatro singles e um LP. Estudava e cantava aos fins de semana. Depois parei de cantar porque tive a transição de voz, e só recomecei aos 17 anos. Foi aí que fui para as casas de fado. Parei de estudar no final do 9º ano, e pronto. Tudo o que aprendi depois foi para dignificar o meu trabalho. Comecei a ler poesia, a interessar-me por poesia clássica porque achava que podia cantar fados tradicionais, já tinha visto outros fadistas fazê-lo e fui aprendendo ao contrário.
O fado não acabou por desviá-lo de uma infância ou adolescência mais normal? O que é que os seus amigos diziam?
Não dizia aos meus amigos que cantava fado, a maior parte deles não sabia. Uma vez contei a uma professora e ela gozou comigo. Na altura o fado era considerado piroso. Era normal talvez na Mouraria ou Alfama, em Oeiras não. Os meus amigos não ouviam fado, nem nada. Mas acreditei sempre no fado, até porque apesar de ter coisas que não eram muito boas, tinha outras de uma qualidade extrema, como Amália, Carlos do Carmo, Maria Teresa de Noronha, intérpretes incríveis.
Como é que um miúdo de 17 anos, nessa situação, foi sempre acreditando?
Nunca duvidei do que queria. Houve uma altura em que surgiu um convite para gravar fados muito... foleiros, mas que supostamente seriam os que vendiam. Lembro-me que fui à editora, disse que sim a tudo mas depois nunca mais lá pus os pés. Fugi com toda a alma e graças a Deus não gravei aquelas coisas.
Há muita rivalidade no fado?
Há, mas é saudável, depende da forma como lid amos com ela. Eu sempre fiz o meu trabalho sem olhar para o lado e sem competir. Mas também há camaradagem, é engraçado. Se alguém estiver mal toda a gente ajuda. Tenho amigos que trabalham noutras áreas e é a mesma coisa, às vezes pior. A forma como me relaciono com os meus colegas é saudável e acho que não tenho muita rivalidade. Mas têm em relação a mim, e é óptimo sentir que existe essa rivalidade. Gosto tanto quando eles ficam chateados com o meu trabalho!
E com os seus irmãos, que também cantam?
Não! Somos irmãos. Quando era miúdo cantava para eles lá em casa, antes de dormir. Nessa altura eu cantava fados à noite e eles ficavam assim [abre muito os olhos]. O Pedro cantava num coro, depois nos Ministars, era lá dessas coisas e depois começou também a cantar fado. O Hélder começou tarde, também. Começou por ter uma produtora e por ser manager de uma série de fadistas. Mas como tinha trabalhado à noite no Senhor Vinho [restaurante e casa de fados na Lapa, em Lisboa], depois começou a cantar.
E é homem de ir a concertos?
Vou a muitos concertos. Ainda hoje estive a dizer que quero ir ao dos Walkmen. Também quero ver os Vampire Weekend. Fui ver o Prince, sou fã dele, gosto de muita coisa. Sempre que posso vou ver concertos.
Tocou no Sudoeste, com os Humanos. Como foi fazer parte daquele projecto?
Foi um trabalho quase de arqueologia, que aquilo estava gravado em várias cassetes. Foi um trabalho que adorei fazer, adorei a trabalhar com eles todos. Deu-me um prazer enorme cantar aquelas canções inéditas do António Variações. Achei fantástico, cantei para 60 mil pessoas, coisa que nunca tinha acontecido na minha vida. Era o único de fato, o único que não dançava e que cantava fado! Foi muito divertido.
fonte ~ i
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