O Hardmusica conversou com Duarte, e esclarecemos que as fotos foram gentilmente cedidas pelo seu agente.
Hardmusica: Lançado o CD, qual o balanço que faz nesta altura?
DUARTE: Sendo que “Aquelas Coisas da Gente” foi apresentado em finais de 2009, os meses que entretanto foram correndo, deram-me a possibilidade de poder pensar os resultados deste trabalho mediante três dimensões de análise distintas.
Numa primeira perspectiva de análise, referente a uma abordagem do objecto segundo características que se prendem com a sua natureza artística (contemporaneidade, qualidade musical, composição, letras, características contextuais mediante o estado da arte) julgo poder afirmar que este trabalho foi de encontro às minhas expectativas. Sinto que a procura da minha autenticidade artística foi significativamente conseguida neste trabalho de equipa, tendo em conta o universo musical, relacional e vivencial que lhe está adjacente.
A segunda lente de análise, focada em questões relativas ao “produto” que se pretende dar a conhecer e dar a “consumir”, será pois onde falamos do objecto enquanto objecto de consumo, do seu criador e do trabalho de promoção destes e parece ser aquela dimensão onde penso que mais coisas poderiam ter acontecido. Não que o objectivo primeiro deste trabalho tenha sido o de alcançar um produto de consumo imediato, mas não posso deixar de manifestar alguma da minha insatisfação, na medida em que terá sido difícil dar a conhecer aos outros o produto do meu trabalho.
É complicado encontrar formas de entrar nos poucos e muitas vezes diminutos espaços de apresentação e promoção para os trabalhos, quando não estamos directa ou indirectamente ligados às pessoas influentes que se movimentam nesses mesmos espaços. Vejamos por exemplo o caso de programas na televisão pública tidos como de carácter cultural (e sim, só posso mesmo falar de serviço público, uma vez que no caso de particulares, estes podem fazer as suas escolhas sem ter que prestar satisfações aos contribuintes) ou mesmo situações relativas à imprensa escrita, que recebem centenas de trabalhos discográficos todas as semanas e cujas pessoas responsáveis pela sua divulgação terão que realizar uma filtragem dos mesmos, mediante critérios, padrões e indicadores que muitas vezes não percebemos bem quais são. Acontece que muito provavelmente, ainda estou do lado daqueles que ficam sujeitos aos tão “mal fadados” critérios de exclusão!
Por fim, e numa terceira conjuntura de análise, tenho que referir as críticas e as opiniões daqueles que escolheram ouvir e/ou reflectir sobre o meu trabalho e que depois, de alguma forma, me fizeram chegar o seu sentir sobre o mesmo.
Lembro-me do José Fonseca e Costa e do seu tão assertivo texto de apresentação do CD, lembro-me da crítica da revista Blitz onde surge a ideia de um mais contemporâneo fadista, lembro-me da crítica que saiu na Grécia relativamente à minha interpretação da canção “To Tsigaro”, lembro-me das muitas pessoas que no final dos concertos vêm ter comigo e me perguntam porque é que nunca tinham ouvido falar do meu trabalho…
H: Recebeu o Prémio Amália Revelação 2006, como se sentiu e qual o significado que ainda hoje tem esse prémio?
DUARTE: Quando soube que iria receber o Prémio, o sentimento foi assim como o de ouvir alguém dizer: “Puto, para princípio de conversa não está mal… Agora vê se trabalhas, porque esta coisa de construir caminhos na arte em Portugal não é fácil!”.
Gosto de pensar que este prémio foi como que um marco inicial no meu caminho enquanto artista, quase uma cerimónia de iniciação se assim se quiser entender. Mas é claro que fiquei agradado e que de alguma forma foi gratificante para mim, não por objectivamente ter recebido o prémio, mas antes pelo reconhecimento subjectivo de outros relativamente à minha “entrada” num meio que até então me estava longe.
H: O facto do José Luís Gordo integrar o júri terá "ajudado" a ser distinguido, recordo que nesse ano do elenco do Senhor Vinho arrebataram os dois "grandes" prémios Maria da Fé e António Zambujo.
DUARTE: Agora que fala nisso, estava aqui a lembrar-me que por exemplo a Mariza, o Camané, a Ana Moura, o Jorge Fernando, o Dr. Machado Soares, a Aldina Duarte já foram (e alguns destes ainda são) fadistas residentes do Senhor Vinho e se não estou em erro, já terão sido também distinguidos com prémios Amália. Talvez um destes dias possamos vir a ter oficialmente instituídos os prémios Senhor Vinho, mas não me parece que tenha sido nesta situação!!! Já tenho ouvido falar em “lobbies” no fado, mas sinceramente, não me quer parecer que estes andem pelo Sr. Vinho!!! [Risos]
Por outro lado, se bem me lembro, fizeram parte do júri cinco elementos, sendo que um desses cinco era realmente o José Luís Gordo. É-me difícil conceber ou acreditar (e aqui estamos a falar das minhas crenças) que um elemento de entre cinco possa ter anulado, condicionado ou influenciado decisões e opiniões dos restantes elementos do júri relativamente ao mérito do meu trabalho, no sentido de me ter sido atribuído o prémio revelação.
Brincadeiras à parte, talvez possa ser interessante, a partir dos vários artistas que já passaram pelo espaço Senhor Vinho, pensar nos contributos desse mesmo espaço para a consolidação do trabalho desses artistas. Falamos sem dúvidas de um lugar por excelência da formação artística, relativamente à qualidade das interpretações, à escolha do reportório, das composições, das letras… Nesta “escola” os artistas/alunos parecem trabalhar no sentido de obter uma consolidação dos conhecimentos face às suas potencialidades e limitações, para que com esses mesmos conhecimentos possam definir o mais autenticamente possível os seus caminhos.
H: Numa altura em que o fado é planetário e fez um CD tão contemporâneo o que ainda não aconteceu para ser reconhecido como um valor a contar para o futuro do fado?
DUARTE: Desde já o meu obrigado pela caracterização do meu trabalho enquanto contemporâneo. Quanto à sua questão do que ainda não aconteceu… Está sempre tanta coisa a acontecer e há sempre tanta coisa por acontecer, que relativamente aos porquês de um não reconhecimento enquanto valor de futuro, o que posso dizer é que não me parece fazer muito sentido neste momento ter que estar preocupado com esse reconhecimento. Acredito que se o meu trabalho continuar pelo caminho da entrega genuína e autentica no meu canto, vou conseguir que cada vez mais pessoas possam conhecê-lo, manifestando-se consequentemente as suas formas de o sentirem, sejam estas boas ou menos boas.
Vendo bem, isto começou tudo há tão pouco tempo… Quem sou eu para ter que estar preocupado em assegurar o futuro de uma coisa que é muito maior que qualquer uma das suas partes (falo neste contexto do Fado)? E não podemos esquecer que este é um caminho possível… O meu caminho, a minha construção… Uma construção como qualquer outra… Que se vai fazendo com tempo e com escolhas o mais assertivas quanto possível. Por outro lado, o reconhecimento só pode acontecer depois de um conhecimento. E depois surgem-me aqui algumas questões que se prendem com as instâncias ou as pessoas que poderão fazer esse trabalho de reconhecimento e atribuição de valor: Quais serão as mais válidas? Quais serão aquelas que devemos filtrar ou até mesmo esquecer? Quem cria essas instâncias? Quem é mais ou menos capaz de avaliar ou atribuir um valor? Porque faz alguém tal trabalho? Ao reconhecimento prefiro sem dúvida o conhecimento.
H: A "raebetika" e o fado têm pontos de aproximação? E quais?
DUARTE: De um modo geral, toda a música parece ter pontos que se podem definir como de aproximação. Assim como duas pessoas que dançam, sem que nenhuma delas tenha que perder a sua identidade, dois universos musicais distintos também podem dançar. Não sou um entendido da música grega mas senti que, no breve contacto que tive com esta, a força da palavra, a importância do ritual, a carga simbólica e a entrega nas interpretações poderiam ser pontos de aproximação entre a “raebetika” e o fado.
H: Como foi o trabalho com a compositora grega e como se deu por terras helénicas; vai voltar?
DUARTE: Quanto ao trabalho com a compositora Evanthia Reboutsika e a cantora Elly Paspala, este começou num convite que em muito me honrou, por parte desta tão brilhante compositora que, depois de descobrir o meu trabalho via internet, decidiu convidar-me para, com o seu ensemble e a cantora Elly Paspala, prepararmos uma temporada de 12 espectáculos no Polis Theatre em Atenas durante os meses de Novembro e Dezembro de 2007. Foram espectáculos onde as músicas e os músicos se cruzaram naturalmente, sem que a raiz musical de cada um fosse posta em causa ou se anulasse. Por entre algumas traduções, adaptações e recriações de músicas gregas, também tive comigo nos meus fados, outros músicos e cantores gregos que se deliciaram com a nossa música portuguesa.
Foi sem dúvida uma das experiências mais enriquecedoras que tive até então para a minha música. O viver de Atenas, o descobrir da música grega, o valor que os gregos dão à sua cultura, os amigos com quem ainda hoje vou falando e que ficaram por lá, foram coisas que me marcaram e me fizeram crescer.
Posso confidenciar que senti algumas vezes mais apoio e valor face ao meu trabalho na Grécia do que em Portugal. As pessoas que não conheciam o meu trabalho de lado algum, passados alguns dias de concertos, entrevistas várias, programas de televisão e rádio já comentavam e criticavam a minha música.
Quanto à questão que me faz sobre a possibilidade de voltar, eu já voltei. Depois da temporada de concertos em Atenas durante o Inverno de 2007, no Verão de 2008 fui convidado para participar com a Evanthia e a Elly num Festival de Música na ilha de Kios.
Gostaria muito de poder retribuir o convite, bem como a hospitalidade que tive por lá, sendo que agora em Portugal, mas não me parece que seja fácil entrar no circuito dos festivais em Portugal…
H: Vai repetir a experiência com esta compositora ou com outro músico?
DUARTE: Neste momento não tenho nada projectado ou idealizado, mas estou receptivo para esta ou outras partilhas que me façam sentido. Fazer só por fazer não me iria saber bem com certeza, se tiver que ser, como em qualquer relação, terá que ser construído e terá que fazer sentido.
H: Para si, o fado é um caminho musical de futuro, ou um caminho para uma outra música?
DUARTE: Para mim o fado é muito mais que só um caminho de futuro. O (s) fado (s) são muitos caminhos. Gosto de pensar no fado como um universo do qual eu participo e para o qual tento contribuir com a minha modesta e pequena parcela. Sinceramente, não estou muito preocupado para onde vamos, desde que respeitemos o tão valioso legado que nos foi deixado por tantos e tão bons fadistas e músicos que já tivemos e continuamos a ter.
H: Choramos ainda o fado porque afinal os sentimentos são os mesmos (eu aqui devo dizer que reconheço modernidade no que escreve)?
DUARTE: Nós choramos porque somos pessoas e porque sempre chorámos… Choramos e crescemos também porque temos medo. O nosso espaço emocional é infinito e como tal vai estar sempre presente, sendo que por outro lado, o nosso tempo, sendo narrativo é que pode ir mudando. A questão não está no que sentimos, mas antes na forma que encontramos para contar isso. Defendo que o destino ou os destinos sempre foram e continuarão a ser contados e cantados, num tempo e por uma narrativa contextualizadora dos mesmos.
H: Quais os próximos espectáculos e projectos?
DUARTE: Vamos ver se um destes dias temos uma grande sala em Lisboa… Entretanto vou trabalhando para um novo disco. Ler, escrever, compor, vou também fazendo alguns concertos… Continuar “devagarinho e em passo certo” como dizem os velhos da minha terra.
H: Fado ou psicologia? Acha que vai conseguir o equilíbrio, alcançando o sucesso no meio fadista que se mostra tão competitivo?
DUARTE: A minha procura não é uma procura do sucesso enquanto conceito ligado à mediatização ou popularidade, mas antes uma procura do prazer pela criação. Interessa-me contar e cantar a vida, bem como aquilo que nela vamos fazendo todos os dias… É claro que se tiver sucesso (e não vou ser hipócrita ao ponto de afirmar que não penso neste como sendo algo que surge pelo bom desempenho nas coisas que nos propomos a fazer) este vai ser uma consequência e não uma finalidade no meu caminho. Não sinto portanto neste momento que tenha de escolher entre o fado e a psicologia, uma vez que escolhidos estão os dois. Tenho antes que continuar a trabalhar no sentido de ter prazer nestas duas áreas, que em muitas situações se podem mesmo complementar.
Quer-me parecer por outro lado, que o meio fadista de que falou não é mais nem menos competitivo que qualquer outro meio artístico ou profissional. É o que é! Não estou aqui numa corrida com ninguém… Não estou aqui numa batalha contra alguém… Eu só quero continuar a ter a possibilidade de fazer as minhas coisas, de cantar as minhas coisas, aproveitando ao máximo as partes boas que vou encontrando no caminho.
H: Quais as suas referências fadistas, em termos de intérpretes? Ou outras?
DUARTE: Não me sabe nada bem ter que fazer a distinção entre referências fadistas e outras. Sem pensar muito nisso… Jorge Palma, Fausto, José Mário Branco, Jim Morrison, Chico Buarque, Sérgio Godinho, Vitorino e Janita Salomé, Amália, Carlos do Carmo, Carlos Paredes, João Ferreira Rosa, Maria da Fé, Alfredo Marceneiro, Carlos Zel… Vão ficar uns tantos por referir!
H: Trabalhar com a Maria da Fé torna-o mais exigente de si próprio, qual a influência da grande fadista no seu trabalho?
DUARTE: Mais que poder trabalhar com a Maria da Fé, importa o poder estar, o poder crescer, o poder aprender e o poder ouvir. Sem dúvida que com a Maria da Fé me tornei mais exigente relativamente ao meu trabalho, sem dúvida que com a Maria da Fé me tornei mais capaz no domínio e na prática do meu trabalho.
Foi a Maria da Fé quem me recebeu e me foi tentando perceber em Lisboa, foi no Senhor Vinho que fui crescendo… Tenho hoje na Maria da Fé bem mais que uma grande referência, bem mais que uma “tutora” do meu trabalho. Tenho hoje com a Maria da Fé a certeza de uma amizade que foi crescendo na partilha de conversas e experiências que guardo como se de uma obra de arte única se tratasse.
H: Quando canta, quais as suas preocupações?
DUARTE: As minhas preocupações não o são quando canto… Provavelmente estão no que canto e espero sinceramente que continuem por lá. Cantar para mim nunca foi estar preocupado, embora haja muitas preocupações nas coisas que vou cantando… Seria bom se todos nós pudéssemos cada vez mais pro activamente relançar as preocupações destes nossos dias!
H: Como escolhe um fado, uma letra?
DUARTE: Comigo nunca foi uma escolha imediata, forçosamente consciente ou completamente racional, mas antes um processo construtivo e progressivo no meu tempo e no meu espaço. Já me aconteceu surgirem primeiro as letras, já me aconteceu chegarem primeiro as melodias, já me aconteceu também dispararem as duas em simultâneo. Contudo, a coisa parece ter o seu princípio na vontade de se pintar um quadro, sendo que depois vamos traçando as primeiras linhas (musicais e/ou de escrita) que nos permitem sustentar a história que queremos contar. A seguir vamos cantando para dar cor, até sentirmos que já se aprendeu… E voltamos a tentar… E voltamos a aprender… E riscamos… E arriscamos… E voltamos a escrever… Portanto, muitas vezes o quadro já é outro… E outras tantas vezes desistimos, ganhando balanço para tentar de novo. É um bocadinho como arrumar a casa!!!
H: Quando o ouviremos em Lisboa, num grande espectáculo? Por exemplo no Jardim do S. Luiz...
DUARTE: Por mim e caso assim fosse possível, era já hoje!!! Muito embora também sinta que os grandes espectáculos não o são pelas salas, mas antes pela qualidade das construções artísticas, que podem ter lugar tanto em salas de pequena como de grande dimensão.
Contudo, já foram realizadas algumas tentativas nesse sentido e ficou na maioria das vezes aquela sensação de que os senhores que programam os eventos ou que produzem os espectáculos desses espaços não parecem ainda conceber essa possibilidade.
fonte ~ hardmusica
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