"Significado" começou como encomenda da d'Orfeu, associação cultural que, em Águeda, vem trabalhando, divulgando e ensinando a música tradicional, as danças populares ou as artes de palco. Seria uma comemoração dos seus 15 anos, com os irmãos fundadores (Luís, Artur, Vítor e Rogério Fernandes) como personagens centrais, mas não ficou por aí. Transformou-se nisso e numa outra coisa. E é precisamente daquilo e disto que Tiago Pereira conversa de forma rápida e entusiasmada. Discorre sobre o seu novo filme, sucessor de "11 Burros Caem de Estômago Vazio" ou "B Fachada - Tradição Oral Contemporânea", e mais uma acha para a fogueira da discussão sobre o lugar da tradição na música popular da actualidade.
"Significado" tem por subtítulo "Como seria a música portuguesa se gostasse dela própria" e, durante a entrevista, Tiago aponta que a Banda do Casaco, em "Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos", ano 1977, já recorria aos samples de diversas proveniências que, anos depois, Brian Eno e David Byrne utilizariam no celebrado "My Life In The Bush Of Ghosts" - ainda assim, refere, poucos em Portugal sabem quem é a Banda do Casaco. Mais tarde, falará de João Aguardela e do seu trabalho enquanto Megafone e lança a questão: "Como teria sido Portugal, para nós da geração que assistiu ao eclodir da música de dança, se os samples de músicas e recolhas portuguesas tivessem sido usadas desde o início?" Fala-nos disto, mas aquele "como seria a música portuguesa" é primordialmente dirigido aos que, de tanto a querer preservar, a envolvem num abraço sufocante. Explica: "Há a tendência para ignorar que a tradição hoje, em 2010, não tem nada a ver com o que era há 40 anos. Continua presente o positivismo do aqui só se faz assim e só se faz desta maneira. Temos a memória afectiva do PREC que criou uma resistência. E aquilo foi tudo muito bonito, mas hoje em dia já não existe".
Afinem a velhinha!
Em "Significado", Tiago Pereira não procura sinais de um passado à beira de desaparecer. Enquanto autor, busca novos sentidos. Agitador, põe óculos de mergulhador em Adélia Garcia, cantadeira que Giacometti recolheu há cinco décadas, aponta que o deslumbramento urbano com o exótico rural representa estagnação e parolice e, ao contar-nos das recolhas que faz país fora e dos documentos vídeo que vasculha em baús esquecidos, há-de destacar: "tenho que dizer que esta memória existe, mas se eu quiser que ela seja contemporânea, tenho que a tratar de forma contemporânea". Todo o seu trabalho, de resto, aponta nesse sentido. Não por acaso, define-se como "vídeomúsico" - pormenor: nos seus filmes, a montagem do som precede sempre a da imagem.
Em 2009, na vídeo instalação "Mandrágora", pôs mezinhas e responsos a encontrar eco na música de Tó Trips ou Tiago Sousa, contrapôs gwana marroquino a curandeiros beirãos, correspondeu trip de rave moderna a alucinação da ancestral erva do diabo.
Com "Significado", monta um caleidoscópio de gentes e de suas práticas na abordagem ao tradicional para chegar a isto: "Tradição de futuro. Para mim, isso é que é importante. Ter o passado, o que é agora e o que vai ser, como na banda desenhado do Alan Moore em que todos os tempos se encontram num vértice. É essa noção que quero nos [meus] filmes".
Temos então os irmãos Fernandes, temos etnógrafos e musicólogos, a artista plástica Joana Vasconcelos, os Diabo na Cruz e o músico Vítor Rua. Temos Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa, ou Júlio Pereira, pai de Tiago, e, com eles, uma genealogia da descoberta e apropriação da música tradicional desde a década de 1970. Temos o Megafone de João Aguardela e a sua dança samplada das recolhas de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. E os Dazkarieh que com instrumentos tradicionais e atitude rock põem metaleiros do Barreiro todos no "mosh", um Ricardo Lameiro que, com tecnologia moderna, transporta o fagote para novas dimensões, e, claro, a Banda do Casaco que, recuperando palavras de um dos fundadores, Nuno Rodrigues, em "Significado", andou nos anos 1970 e inícios de 1980 a pensar a tradição rural para "gajos que eram de Lisboa e Cascais" e a resgatar Ti Chitas a Penha Garcia para "pôr um botox nas berças". Tiago Pereira não escolhe ninguém, não aponta um caminho. "No 'Significado', interessava ver todo o tipo de práticas contemporâneas que existem na música tradicional. Não me interessa criar a narrativa de um filme, interessa-me o conceito de dar esta informação toda, lançar os ses e as interrogações". Conclui: "Não é para eu escolher, é para as pessoas irem por onde quiserem".
No caso dele, não poderia ser de outro modo. No universo da música tradicional, aquilo que mais o incomoda é sentir que se defende um caminho único, sem hipótese de desvios. É por isso que se atira "à sacralização das velhinhas e das recolhas de Giacometti". Provoca: "Afinem a velhinha!, Kill Giacometti!". E pergunta: "Para quê fazer projectos iguais à Brigada Vítor Jara? Porque é que, vinte anos depois, ainda tens gente a tentar fazer o 'Cavaquinho' que o Júlio Pereira fez nos anos 1980? Que o façam, mas percebam que isso não representa o pulsar actual, não representa a evolução". Na sua opinião, a ânsia de preservar a música de contaminações conduziu a um processo perverso: "Muitos dizem que a culpa das pessoas não ligarem à música tradicional é da folclorização do António Ferro, mas isso aconteceu há mais de quarenta anos e, entretanto, assistiu-se a um fenómeno semelhante, com toda esta espécie de 'folclotribos' que se juntam para fazer as danças europeias no Andanças com tudo muito coreografado e pouco sentido". Acentua, novamente: "O meu interesse é perceber como poderá a tradição sair do seu gueto e chegar a novos públicos, chegar realmente às pessoas".
Ponto de partida
Em "B Fachada - Tradição Oral Contemporânea", também em exibição no Indie, Tiago levou o músico de "Viola Braguesa" a Caçarelhos, pô-lo a cantar canções as cantadeiras e ouvir as canções que elas tinham para cantar. Filmou-os no mesmo plano, sobrepondo a ruralidade delas e o urbanismo dele como se emanassem de uma mesma vontade - e depois, Fachada trouxe de Caçarelhos uma "D. Filomena" com séculos de idade e, em Lisboa, ninguém suspeitou que a canção não fosse dele. "Tradição oral é transmitir o que se vive. Passá-lo de geração em geração, contaminando-se, alargando-se e atingindo combinações infinitas"- isto o que nos disse então Tiago Pereira. Em "Significado", ensaia uma conclusão. Coisa múltipla e por vezes contraditória, com as imagens e os sons, os de arquivo e os captados agora em dança neurótica ou em fusão frutuosa.
A encomenda inicial de que resultou este filme, que será também um DVD acompanhante o livro "Contexto", história da d'Orfeu assinada pelo jornalista António Pires, já continha a génese da sua estrutura. De facto, bastava a Tiago Pereira olhar os quatro irmãos que fundaram a associação. Artur, tocador de concertina que, nos Danças Ocultas, rompe com as formas canónicas de abordar o instrumento. Luís, dos Toques do Caramulo, que "pega na música da Serra e as coloca num contexto global". Rogério, "mais convencional", que "tomou conta da Orquestra Típica de Águeda". E Vítor, homem do improviso que percorre as ruas experimentando percussões e captando os sons da cidade, "inventor" de uns deliciosamente baptizados Mistérios das Vozes Vulgares que vemos a ensaiar polifonias ora na serra, ora em altar de sacristia. A partir deles, dos seus diferentes processos criativos, Tiago abriu o espectro. E, abrindo o espectro, oferece-nos um quadro múltiplo e dinâmico, mas com centro definido, denúncia da sua marca autoral.
Não o preocupa a contradição que é ter Joana Vasconcelos, olhando da cidade, dizer que em Portugal ainda há muita gente "que depende do seu burro" e, no Caramulo, o musicólogo que refere vivermos "tempos de despedida do mundo rural": "Fica a memória individual e o estudo, a museologia". Não, isso não o incomoda. Porque nesse jogo de vozes, tudo acaba por se conjugar.
Vítor Rua a referir o manifesto "Arte do Ruído", do futurista Luigi Russolo - "há que destruir o passado, os conservatórios e criar algo novo, e o ruído tem que estar ali" - e Vítor Fernandes a cantar sons de guindastes e apitos de fabrico nas suas improvisações. Carlos Guerreiro a diagnosticar que "o problema não está na fonte [nas recolhas, nas canções que subsistem na memória das pessoas], está em como tratar aquilo que ainda está no reservatório", e Jorge Cruz, dos Diabo na Cruz, a manifestar o desejo de, amalgamando tradição e a vivência de hoje, chegar a algo "único", "nosso".
"Significado" pretende discussão e presente. Pretende ser a tal memória de futuro.
"Num país fragmentado", pergunta Tiago Pereira, "como é que se partem as caixas todas, como é que se parte este mundo da tradição para criar objectos que, vindos dela, sejam uma outra coisa, encaixem noutros sítios e interessem a mais pessoas?"
"Significado", que se ensaia como conclusão das obras de Tiago Pereira que o antecedem, não fecha nada. É um ponto de partida.
fonte ~ Ípsilon